quinta-feira, 9 de julho de 2020

Eros e Psique - Cap II





A ardência na face atingida pela bofetada que a mãe lhe dera, ainda latejava; as marcas dos dedos de Afrodite marcavam seu rosto. Eros mantinha os olhos presos ao chão, enquanto a deusa esbravejava com fúria:
— COMO TE ATREVES, FILHO MEU? COMO PUDESTE SER TÃO IMPRUDENTE E APAIXONAR-TE JUSTO PELA MINHA RIVAL???
Eros, enfim, cria coragem e com olhos lamentosos, responde-lhe:
— Foi uma desventura, minha mãe e reconheço que provei do meu próprio veneno. Mas tenha piedade, bondosa Afrodite. Permita-me desfazer a maldição imposta sobre ela.
— Não — a deusa retruca-lhe taxativa. — Que ela sofra pela beleza que possui. Não conseguiste fazer com que ela se apaixonasse pelo roedor, mas graças às águas da Desventura, nenhum homem será capaz de amá-la e se tentar, a minha ira cairá sobre ele. Não poderia haver uma vingança melhor do que esta, poderia?! — fala a deidade com imensa satisfação. — Ela ficará só para o resto da vida; jamais conhecerá o amor.
Regozijava-se a deusa quando, para sua surpresa, o filho joga-se aos seus pés numa súplica desesperada:
— Então, pelo menos, permitas que eu a despose!
Afrodite levanta-se de salto. Não esperava tamanha audácia:
— ISSO NUNCA!!!!! TU ÉS UM DEUS E DEUSES NÃO SE CASAM COM MORTAIS!
— Pois muitos deuses se envolveram com mortais, inclusive a senhora… — retruca o rapaz de pronto.
— Mas não os desposamos, nos divertimos com eles — corta-lhe de modo ácido. — É bem diferente do teu intento. Transformar uma infame mortal na esposa de um deus é uma atitude, no mínimo, insensata!
— Não te importas que eu, teu filho, sofra de amor?!
— Quem mandou ser tão descuidado? Sofra! Pois minha permissão e benção sobre estas núpcias, não as tereis. JAMAIS!!!
— Minha mãe… por favor…
— Saia Eros; e não me apareças tão cedo.
A deusa senta-se na sua penteadeira de mármore e tomando sua escova em mãos, entretém-se a arranjar seus sedosos cabelos, enquanto solta um sorriso cínico e enviesado, vendo o filho afastar-se cabisbaixo.
Fora do santuário, Eros — inconformado com sua sorte — olha uma última vez para a porta que fecha-se atrás de si.
— Se não quiseres abençoar-nos, pouco importa minha mãe. Eu vou desfazer a maldição e hei de casar-me com ela, com ou sem o teu consentimento — encerra o deus do amor em tom desafiador; uma guerra de forças estava por vir.

****

“Os dias se passaram e Orítia e Eugeria, suas irmãs mais velhas, arrumaram ótimos pretendentes e se casaram. Já Psique, mesmo com toda beleza que possuía, não conseguia arrumar nenhum noivo e os homens que antes propuseram-lhe casamento — sob o jugo da terrível vingança de Afrodite — morreram todos de forma trágica. Logo, a donzela foi dada como amaldiçoada e ninguém mais aventurou-se em pedir-lhe a mão.
 A partir de então, a donzela enclausurou-se em seu quarto, tomada de tristeza e uma grande solidão; não mais se alimentava, não sabia mais o que era ter uma repousante noite de sono e o sorriso belo e jovial, que encantou a tantos mortais um dia, apagara-se de seu rosto.
Os pais não entendiam o porquê daquele destino tão torpe…”

****

Certo dia, numa noite de procela inclemente, com raios de Zeus cortando os céus, Eros disfarça-se como um velho pedinte e bate às portas do palácio dos reis em Mileto a procura de abrigo.
Piedosos como eram, recebem o ancião e desabafam sobre a sina da filha mais jovem. Foram então aconselhados por ele, a buscar o oráculo de Delfos e saber alguma resposta sobre o caso. Lá, as sacerdotisas de Apolo foram implacáveis, ao ditarem a sorte da jovem:

— O ORÁCULO DE DELFOS DIZ: A virgem não se destina a ser esposa de um homem mortal. Seu futuro marido a espera no alto da Montanha dos ventos. É um monstro horrendo e cruel, a quem nem os deuses nem os homens podem resistir.
— O QUÊ? — grita o rei.
A mãe a abraça assustada e começa a chorar.
— Esta é a vontade dos deuses — afirma friamente a pitonisa.
Psique também não consegue acreditar. Seu pai, inconformado, cai por terra e soca o peito de desgosto.
— Deuses! Em que momento nós vos ofendemos ao ponto de despertar tamanha ira? — pergunta o rei amargurado, como se um punhal tivesse atravessado seu coração.
Psique sente uma pena imensa dos pais, tenta confortá-los e devolver-lhes a paz:
— Por que me lamentais, queridos pais? Deveria antes ter sofrido, quando todos me aclamavam e chamavam-me “Afrodite Encarnada”. Percebo agora, que sou vítima deste nome. Resigno-me e aceito o meu destino. Levem-me imediatamente a tal Montanha dos ventos, onde meu futuro esposo me espera.
E assim, voltaram ao reino e prepararam o cortejo da desafortunada noiva, que mais parecia um cortejo fúnebre do que um cortejo festivo. Todos os súditos lamentaram a sorte da bela princesa. Psique tentava passar uma imagem de fortaleza. Entretanto, após despedir-se de seus pais e de todos, vendo-se sozinha no alto do monte, ajoelha-se e levando as mãos ao rosto, chora amargurada.

****

— POR QUE FIZESTE ISTO, MINHA MÃE? — irrompe Eros enfurecido, assim que chega no santuário. — COMO PUDESTE MANIPULAR O ORÁCULO ASSIM?
Afrodite estava sentada em seu trono, e afagando despreocupada as plumas de uma de suas pombas preferidas, responde-lhe:
— Tive uma pequena ajuda. Pelo que percebi, Apolo é um antigo desafeto teu...
"Ah, Apolo maldito…", pensa o deus no mesmo instante. Sua mãe continua:
— Pensavas em trair-me, não é Eros?! Querias passar por cima da vontade de tua mãe. Logo eu, a deusa do amor, que nada a respeito me é oculto. Aproveito o ensejo e faço-vos um desafio, já que acreditais ser mais esperto do que eu: se conseguires conquistá-la e ganhar-lhe a confiança, embora Psique acredite estar casada com um monstro — e tudo exijo que faças para que ela creia nisto — prometo abençoar vossas núpcias. Agora… se em algum momento, Psique duvidar de ti e do teu amor e sentir medo, eu vos separarei para sempre.
— Ela vai me amar, mesmo acreditando que eu seja um monstro — afirma altivo.
— Pois bem. — Afrodite levanta-se e colocando a pomba branca sobre um dos ombros, vira-se para o filho e acrescenta: — Está feito. Jure que irás separar-se dela se eu vencer. Prometa.
— Eu prometo. Mas eu vou vencer — aceita o deus de modo impensado.
— Veremos — desafia sua mãe.

****

Na Montanha dos Ventos, a bela Psique ainda estava a amargar sua sorte. Queria parar de chorar, mas o medo do futuro ainda a assustava. Decidida a fugir de sua sina, ela se aproxima do precipício e tenciona jogar-se breu abaixo, naquela escuridão que parecia sem fim; como o coração dela também estava.
Quando isto passa por sua mente, uma brisa suave afaga seus fios negro-azulados e uma voz suave, interrompe seu pranto:
— Não façais nada do que possas arrepender-vos depois, bela Psique.
— Quem és tu? Meu marido? — assusta-se a virgem.
— Não, minha cara. Sou apenas um amigo que veio ajudar-vos a pedido do vosso suposto esposo. Sou Zéfiro. Acredite-me; brinquei muito com vossos cabelos quando ainda menina, divertia-se com tuas irmãs nos jardins do palácio — lembra-lhe o deus.
— O Vento-Oeste?
— Eu mesmo. Por que choras, doce donzela?
— Porque o meu coração está afogado em tristeza. Não sei como será quando…
O deus a interrompe:
— Encontrares vosso marido? — e Zéfiro complementa: — Pois vos digo; não temais. Confiai em vosso coração e mui venturosa serás. Venha, bondosa menina, vou levar-vos ao futuro lar e para os braços daquele que vos espera.
Zéfiro sopra sobre os olhos em tom mel da moça e a faz dormir. Depois, leva-a suavemente até uma clareira florida. Pousa-a sobre a grama macia e nesse ínterim, Psique desperta e vendo-se rodeada de um belo bosque — cujas copas das árvores pareciam arranhar o céu —, ouve o murmurar de água corrente. Sentindo a garganta seca, segue aquele som acompanhada de perto por Zéfiro; logo uma fonte de águas cristalinas surge diante de seus olhos e atrás desta, vislumbra diante de si, um imenso palácio todo feito de ouro, marfim e pedras preciosas, semelhante a um templo.
A bela fica extasiada diante de tanta riqueza. As colunas de ouro reluziam à luz do sol e as pedrarias pareciam estrelas caídas do céu que, para descansarem, se fixaram em torno delas.
— Este é vosso lar agora — explica-lhe Zéfiro. — Adeus, bela dama, e seja feliz — despede-se o deus, fazendo agitar-se as folhas das árvores e o tapete gramado sob seus pés.
Psique aproxima-se cautelosa do templo e tenta abrir a porta, contudo, antes de tocá-la, esta se abre lentamente como se alguém já esperasse por ela.


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