terça-feira, 23 de junho de 2020



“Há muito, muito tempo, na Era de Ouro dos Deuses, existia um estimado rei que tinha três filhas. A beleza das duas primeiras era incontestável, mas a beleza da mais moça era algo sobrenatural e impossível descrever, mesmo nas palavras de um conceituado poeta. A formosura dela só poderia ser comparada à de Afrodite, deusa do amor e da beleza, o que levou homens insanos a conclamarem e cantarem loas em sua honra e até chamarem-na de Afrodite encarnada e a ela prestarem culto e sacrifícios.
Aquela fama rendida à jovem trouxe-lhe consequências, pois notando Afrodite que seu culto estava esquecido e seus altares vazios, voltou para a pobre moça a sua cólera…”


Eros e Psique-Cap I


A deusa mal podia acreditar no que seus olhos imortais contemplavam, diante do que seu espelho mágico mostrava-lhe. 
— Ò, infâmia! Descrentes e blasfemos!!! Como ousam comparar-me a essa reles mortal, chamando-lhe pelo meu nome? Ah, minha cara! Hei de dar-te uma lição que amaldiçoarás o dia do teu nascimento e as odes e preces que a ti fazem agora.
Afrodite se levanta do seu trono e caminha firme até a porta do templo de onde eleva a sua voz e, atiçando a bela e vasta cabeleira dourada ao vento, invoca o nome do seu filho:

— EROS!!!!! Eu te invoco… VENHA ATÉ MIM AGORA!!!!!!!!

Eros estava a brincar com seu amigo Zéfiro, um dos deuses dos ventos, conhecido como o suave Vento-Oeste. De repente ele para e estremece, assustando o seu amigo que na mesma hora cessa os risos e indaga: 
— O que foi Eros?
— Minha mãe me chama.
— Pelos deuses! Se Afrodite chama é melhor ires logo.Vossa bela mãe não é muito paciente.
— Nossa brincadeira ficará para depois, velho amigo. 
Eros estremece a segunda vez.
— Pelo jeito é urgente — comenta com Zéfiro rindo e em seguida, abre suas longas e brancas asas; agitando-as, se eleva aos céus. 

****

Afrodite andava de lá para cá, esfregando as suas mãos em total tensão, quando Eros chega ao santuário.
— Aqui estou, minha mãe. Por que me invocaste?
— Por que demoraste tanto?
— Eu não demorei, vim assim que eu pude. A senhora que está deveras impaciente. O que se passa?
— O que se passa?! Siga-me.
A deusa o conduz até seu espelho, onde a imagem da bela Psique se mostrava.
— Ouve meu filho, vede bem a donzela que vos mostro e os louvores que por ela entoam. Devo eu ser eclipsada em minhas honras por uma jovem mortal? Foi em vão que Páris, aquele pastor, concedeu-me a palma da beleza sobre minhas rivais, Atena e Hera, e cujo julgamento foi aprovado pelo próprio Zeus?
— Não minha mãe — concorda o rapaz.
— Então, castiga meu filho, esta aviltante beleza. Assegura à tua mãe uma vingança tão doce quanto amargas foram as injúrias recebidas. Infunde no coração desta audaciosa virgem uma paixão por algum ser baixo, indigno, de forma que ela possa colher uma pena devastadora quanto os louvores que recebe agora.
— Está bem. Assim o farei.
Eros ganha os céus outra vez e voa na direção de duas fontes nos jardins de Afrodite, chamadas Fonte da Alegria e Fonte da Desventura. Uma possui uma água doce como o mel de cor dourada e brilhante e a outra, amarga como fel, de um tom tão escuro quanto o chumbo. Pega um pequeno jarro de âmbar e enche-o com as águas da Desventura.
Feito isso, arma-se com sua aljava e setas, guarda o frasco muito bem e parte para cumprir a missão dada.

****

Alheia e nos belos mundos de Morfeu, Psique dormia despreocupada. Parecia uma ninfa cálida e meiga sobre o lençol de linho branco, que ressaltava-lhe ainda mais a sua tez morena e sua beleza incomensurável.
Eros entra pela sacada dos aposentos e contempla-lhe a dormir tão serena, que chegou a sentir piedade da jovem pelo que iria fazer. Mas ordens maternas não deveriam ser contestadas e precisava cumprir a missão que fora-lhe confiada.
No caminho, capturou um pequeno rato do campo. O roedor agitava-se dentro do seu cativeiro: uma pequena sacola de couro presa ao cinturão do deus.
Retira-a com cuidado e a coloca sobre um móvel do quarto. Iria deixar o pequenino animal naquele lugar estratégico de modo que, percebendo o ser agitando-se no interior da bolsa, ao abri-la, fosse a primeira coisa que Psique visse quando despertasse e, sob a influência da flecha do amor, ao bater os olhos nele, pelo ratinho ela se apaixonaria de imediato.
O deus pega então o jarro que continha o líquido de cor escura e pinga umas pequenas gotas sobre os lábios róseos da adormecida, balbuciando palavras quase inaudíveis:
— Gotas de amargura e desgosto… lábios até então, doces como o mel, tornem-se verdadeiro fel. E agora, o toque final… — ao arrumar suas flechas na aljava, na pressa de atender o desejo de sua mãe, Eros deixou uma delas com a ponta para cima. Para seu infortúnio, fere-se com o objeto pontiagudo. — Ai! MINHA MÃO!!! Oh, não... 
Com o grito, Psique desperta. O deus do amor, assustado, esconde-se aos olhos da virgem que procura em vão pelo quarto escuro.
— Quem está aí? Alguém?!! 
Psique ouve algo mexer-se sobre o dito móvel e constata que há uma sacola sobre ele e dentro, algo guinchando incomodado. Ela se surpreende ao abrir e ver o pequeno ratinho. 
— Oh, pobrezinho! Quem fez essa maldade convosco, meu amiguinho? Decerto, uma das minhas irmãs querendo assustar-me.
Enquanto isso, no seu esconderijo, Eros lutava contra a curiosidade de olhá-la. “Não posso olhar para ela. Não posso olhar…”. 
Porém, foi inevitável. Ele não consegue conter-se muito tempo e olha para a donzela que agora havia libertado o roedor e dirigia-lhe palavras carinhosas, soltando-o no muro da sacada:
— Pronto amiguinho. Estás livre agora. Voltes para o campo que é o teu lugar.
O coração do deus dá um salto no peito. Parecia ter parado por uns instantes, até retomar os batimentos num ritmo mais acelerado, caindo de amores pela bela mortal, no mesmo instante que a olha. 
“ Ah, não! Que fiz eu? Isso nunca poderia ter acontecido comigo. Que infortúnio, oh, deuses! Apolo; tua profecia se cumpriu! Ai, de mim!!!! — pensa desesperado. — Fui vítima do meu próprio sortilégio!”
Achando que havia sonhado com aquele grito misterioso, Psique volta ao leito e aconchega-se para dormir de novo, enquanto um deus apaixonado suspirava de desejo por ela e agora, só tinha um pensamento em mente: desfazer o mal que lhe fizera.



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